sábado, 23 de outubro de 2010

Eutanásia em Centro de Controle de Zoonoses...

Olha como a vida é...estou morando em Portugal e procurando informações veterinárias nos sites daqui, encontrei um texto escrito por uma veterinária da minha cidade natal, Porto Alegre (RS, Brasil)...infelizmente, é um texto verídico...e muito triste...felizmente, não pode mais ocorrer porque hoje existe legislação no Brasil proibindo a eutanásia em animais sadios nos CCZs...mas o que não mudou foi o comportamento dos donos dos animais...estes continuam egoístas e insensíveis...a humanidade vai demorar muito a evoluir ainda!


VIDA DE CÃO

por Simone Barcelos Gutkoski

* Simone Barcelos Gutkoski é ex-veterinária do Centro de Zoonoses de Porto Alegre.
Entre suas funções estava a eutanásia (sacrifício) dos animais apreendidos.

"14h32m
“Canil Municipal, bom dia.”
“É daí que recolhem os cães ? Tem um cão com a pata toda comida na frente da minha casa, acho que é bicheira. Apareceu faz uns três dias e não levanta mais... Manda a carrocinha logo, por favor !”
“... o seu pedido é uma emergência e vai ser passado pelo rádio para que o recolhimento do animal seja feito ainda pela manhã.”
“Ai que bom, moça. A gente sofre vendo o bichinho sofrer, né ?! O que é que vocês fazem com eles depois, hein ? Sabão ?”

15h17min
“Central chamando Apreensão!!”
“Apreensão na escuta.”
“Tem um cão atropelado na Rua das Acácias. O animal está na calçada, ao lado do mercado Santos. Parece que está com a pata quebrada.”
“Ok. Entendido.”

17h
“Apreensão chamando Central !!”
“Central na escuta!”
“Avisa a veterinária que tem dois cães para eutanásia.”
“Ok.”

Na seringa, o sangue do animal misturava-se ao líquido letal incolor, espalhando-se como um manto vermelho. Ora era de um vermelho vivo – sangue de cão forte. Ora de uma cor pálida, alaranjanda – cão fraco, doente. Já perdera a conta de quantas já havia feito – talvez umas mil. A do dia era a 34ª - trigésima quarta. Sabia porque anotava cada uma na planilha de eutanásias: canino ou felino; macho ou fêmea; filhote, adulto ou idoso; apreensão, doação, maternidade ou cela coletiva. Gostava de anotar no espaço em branco uma observação: cadela prenhe, tumor de Sticker, cinomose, atropelado. Ajudava a dividir a culpa. Afinal, papel aceita tudo mesmo. Os humanos têm direito a atestado de óbito individualizado, padrão internacional. Os cães não. Seu ritual funerário é o transporte até um aterro sanitário onde decompõem-se junto às sobras da civilização urbana, enriquecendo o denso chorúmen.

A estas alturas já não sabia mais qual a denominação certa para a eliminação dos animais: eutanásia, sacrifício, execução, extermínio ou destruição. A literatura internacional dos livros e papers a deixava mais confusa ainda: elimination, killing, destruction, euthanasia, putting to sleep, putting down. Gostava de dizer eutanásia porque era uma palavra forte, chamava a atenção das pessoas, provocava. Palavra dolorida que já estava incorporada na rotina de trabalho, no seu dia-a-dia. Trabalho que ia muito além do sacrifício braçal. Consumia-lhe horas de brainstorm – monólogos intermináveis para tentar entender a aceitar aquela loucura banalizada – e horas de sono. Às vezes sonhava com uma pilha de cães mortos ou acordava ouvindo latidos. Na hora de fazer eutanásias, procurava ser a melhor possível para que fosse rápido e indolor para o animal. A vestimenta branca que utilizava, avental, gorro, máscara e luvas, além de ser um ritual médico-sanitário, despersonificava-a fazendo-lhe parecer uma máquina de injetar. Na hora de fazer, passava muita coisa pela cabeça. Teorias sobre a morte e a dor surgiam. Sabia que cada animal comprado nos anúncios dos classificados ou nas pets significava uma adoção a menos e uma eutanásia a mais. Na hora de fazer, sentia raiva das pessoas. Dos donos que entregavam os animais porque estavam velhos. Das pessoas que abandonavam na rua animais que tiveram uma casa, vasilha com água limpa e ração. O padrão racial não era impedimento para que os mesmos fossem descartados pelos donos no Canil Municipal – posto de entrega voluntária dos animais não mais desejados. Poodles branquinhos e cinzas, cocker caramelo, fila tigrado, rotweiller, pastor, husky e até akita ! Se não fossem adotados, em poucos dias adoeciam pelo ambiente infecto e pela depressão que os acometia. Alguns donos diziam: “ele apareceu lá em casa anteontem”. Ia ver, era um cão bem tratado, pêlo brilhoso e abanava a cauda para o dono mentiroso. Os sinais caninos não mentem. Outros donos confessavam: “comprei ele, mas não deu certo. Ele late muito e morde o sofá.” Para conveniência e praticidade dos humanos, as teorias comportamentais caninas e felinas eram ignoradas ou ridicularizadas. No cárcere canino, cada cão era uma história de vida a ser eliminada com uma injeção instantânea. Só nas celas coletivas, mais de 200 detentos caninos aguardando – sem saber – o dia em que partiriam para outra esfera. Sim, deveria existir no além do além um mundo menos cruel.

Uma das que mais lhe marcara foi a de um cãozinho atropelado. Era sexta-feira e como restavam pedidos de urgências não atendidos, fez-se um plantão noturno. Anoiteceu e na espera do veículo chegar, pensava nas tarefas domésticas. O tempo não passava e o estômago lhe doía pela fome. Já havia preparado todo o material: seringas, anestésicos, tranqüilizantes, mordaças. Quando a pick-up chegou, viu o animal no fundo da gaiola. Encolhido em sua dor, manifestava sua agonia através de um choro que parecia de gente. Teve vontade de gritar, sair correndo e levá-lo para um hospital. Mas as circunstâncias pediam outra atitude. Eu = boa; Tanathos – morte: morte boa. Já havia aprendido que para muitos animais a morte é a cura para a dor.

Naquela tarde, ainda aguardava a pick-up trazer dois cães para eutanásia. Já passava das cinco horas quando acompanhou o atropelado ser retirado da gaiola. O que de pior ainda poderia acontecer ao animal depois de ter sido alvo de um ser dito racional que fez de seu carro uma extensão do seu corpo e fúria ? E ser transportado ferido no camburão com outros caninos apreendidos, classificados como perigosos e ameaçadores à saúde da coletividade ? Ao entrar na sala de execução, o animal viu os cães mortos no chão, empilhados. Estava atento ao ambiente estranho, percebido pelos sons e cheiros. O sangue e os excrementos na mesa ao lado eram o registro da vítima anterior: cadela idosa, medo e dor. Sinais da comunicação canina. “Será que ela foi atropelada como eu ?”, deve ter pensado. Já com a boca devidamente amordaçada pelo funcionário, observava com os olhos assustados uma moça que vinha em sua direção. Sentiu uma picada no glúteo e começara a adormecer.

Circular entre os cadáveres e os seus excrementos, o cheiro fétido do ambiente e os latidos ensurdecedores exigiam-lhe um esforço em dobro. Não eram suficientes para tirar a sua concentração. Enquanto colocava o álcool iodado que ia se espalhando nos pêlos da pata dianteira até tocar a pele, a veterinária notou que o cão possuía no pescoço um sinal de sua desconhecida história: uma coleira de couro encardida. Os carrapatos minúsculos que circulavam entre os pêlos, eram os atores secundários da saga canina. Apertou-lhe a pata como um pedido de desculpa e um sinal de despedida. Os auxiliares aguardavam atentos o momento esperado. Garrote feito, veia saltada – punção certeira. Sentia perfeitamente a agulha perfurar o vaso. O sangue veio bem volumoso. Injetou devagar o líquido, enquanto observava o animal desfalecer. Em poucos instantes, que mais pareciam uma eternidade, o ser canino transformava-se em cadáver... Constatou a ausência de reflexo ocular e de batimentos cardíacos. Óbito confirmado. Dentro do avental branco, uma criatura anestesiada e dessensibilizada. Sentia que ao matar, também morria. Acondicionava a seringa utilizada no descartex amarelo. Mas onde despejar aquele sentimento de culpa, frustração e tristeza ? Descobrira que existe um tipo de lágrima que escorre por dentro, acumulando-se nos interstícios do corpo.

Enquanto percebia sua cervical dura e os dentes cerrados, anotava na planilha de eutanásias: cão macho, adulto, atropelado com fratura no membro posterior esquerdo, posterior insensível. Queria escrever algo mais para individualizar e humanizar o seu procedimento, mas faltava-lhe a palavra. Não sabia que o cão sacrificado um dia tivera um dono e um nome: era chamado por Valente."

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Fonte: http://arcadenoe.sapo.pt/forum/viewtopic.php?t=10908&start=0&postdays=0&postorder=asc&highlight=

3 comentários:

  1. Eu estou sofrendo muito por causa de minha cachorrinha. Bebe é o nome dela. Hoje com quase 12 anos, minha Bebe é uma velhinha cheia de problemas de saúde. Aos 7 anos descobrimos que tinha tido atrofia do nervo ocular. Não enxergava mais. Tudo bem, ela continuava a mesma fofura que alegrava as nossas vidas. Não mudamos mais nada de lugar para que ela pudesse circular com desenvoltura pela casa conhecida. Um ano depois, algo mais terrível - câncer. Duas cirurgias e pleno êxito. Ela ficou curada. Pouco tempo depois, com uma tosse constante, descobriu-se seu frágil coração "grande" que apertava o pulmão. De lá para cá, remédios diários são parte dos cuidados com a Bebe. No final de 2010, seu estado de saúde desandou. Edema pulmonar gravíssimo. Uma caixa de medicamentos e visitas constantes ao veterinário. Durante uma viagem, a pessoa que ficou cuidando dela (em minha casa) não percebeu (só Deus sabe que cega era a pessoa que a cuidava, pois os sinais eram óbvios demais) que ela estava com uma grave irritação na pele. Quando retornei à minha casa, antes do previsto, pois estava preocupada com minha amadinha, levei um susto. Imediatamente ela foi hospitalizada. 18 dias entre veterinários, remédios, internação, etc etc... E ela só piora. Por sorte eu estava de férias e poderia cuidar dela melhor. Mas de nada adiantou, ela só piorou. Anteontem vi que havia sangue em suas fezes (moles demais por tantos remédios). Ontem ela teve uns espasmos e passei o dia com ela enrolada numa toalha de banho, aninhada em meu colo. Desisti de ficar correndo para veterinários que pouco ajudam e chorava ao ver que ela sofria. Mal dormi esta noite - de tempos em tempos ia até ela para ver como estava. Ela mal caminha. O corpo frágil não responde aos medicamentos e só dá sinais de piora. As pernas fracas, não quer comer e a água preciso colocar em sua boca com o auxílio de uma seringa. Dá para não pensar em eutanásia? É muito difícil. Seguro ela no colo e espero - que ela melhore ou que pare de sofrer. Eu amo essa cachorrinha. E peço a ela que me perdoe por desejar que ela morra para parar de sofrer. Embora no fundo tenha um enorme desejo de vê-la bem novamente.

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  2. gostaria de doar um cão da raça lebrador q encontrei na rua todo machucado não tenho como ficar com ele pq meu patio é muit pequeno estou com ele ate achar um dono ok moro em porto alegre rs fone pra contato 51 33810815

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  3. quero compartilhar o texto da eutanásia no meu facebook, como faço? É um texto inteligente, sensível, que me fez chorar muito. Tenho 25 gatos dentro da minha casa e os mantenho com mto sacrifício. Mas ainda os mantenho. Sofás rasgados, tudo destruido... se eu tivesse condições, cercaria meu pátio com tela e os deixaria soltos. Mas eu e meu marido os amamos muito e sei q eles são felizes.

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